A Consumação da História

Em 1960, estudiosos bíblicos e teólogos ficaram surpresos pelo pronunciamento do crítico do Novo Testamento Ernst Kdsemann que a apocalíptica era a mãe de toda teologia cristã. 1 Este anúncio produziu uma agitação de entusiasmo porque, se verdadeiro, isto significaria um ponto de mudança principal em nosso entendimento da fé cristã. O choque aumentou quando a teologia de Wolfhart Parmenberg obteve apoiadores, porque insistia que no conceito apocalíptico da história era a base tanto para 2 a fé cristã como o pensamento do homem moderno sobre o futuro. Kdsemann e Pannenberg geraram uma renascença apocalítica positiva entre os teólogos alemães mais jovens.

O que queremos dizer com apocalíptico? Ele vem a partir de uma palavra grega que significa simplesmente “revelação.” Assim, o último livro no Novo Testamento é chamado de Livro de Revelação ou Apocalipse. Além disso, em um sentido restrito e técnico, a literatura apocalíptica se refere aos escritos Judeus e Cristãos que se assemelham ao Livro do Apocalipse no Novo Testamento. Um apocalipse contém revelações divinas secretas sobre o fim do mundo e a natureza do estado celestial. Em outras palavras, a literatura apocalítica retrata a consumação da história.

Entretanto, entre a escrita destes dois livros canônicos, judeus piedosos compuseram muitos pergaminhos apocalípticos que eram parte da preciosa literatura religiosa, mas nunca se tornaram parte da Bíblia hebraica. De forma semelhante, embora o movimento cristão também produziu uma grande quantidade de literatura apocalíptica, a maioria dela foi excluída da forma final do cânon do Novo Testamento.

Permita-me simplesmente listar os apocalipses que foram preservados no todo ou em parte:

Livro de Daniel
I Enoque (Etíope)
Livro de Noé
Livro dos Jubileus
Testamentos dos 12 Patriarcas
Oráculos de Sybilline (Judaico)
Salmos de Salomão

Livro de Zadok (Documento Damasceno)
Pergaminhos do Mar Morto
Comentários de Habacuque
Manual de Disciplina
Pergaminho da Batalha
Livro de Mistérios
Assunção de Moisés
II Enoque (eslavo)
Vida de Adão e Eva
IV Esdras (2º Esdras)
Apocalipse de Baruque
Ascensão de Isaías
Apocalipse de Abraão
Testamento de Abraão
Apocalipse Sinóptico (Marcos 13)
Livro de Revelação

Muitos estudiosos por conveniência limitam seu estudo sobre apocalíptico ao período desde os escritos de Daniel até o período da Revelação (século III A. C. 400 D. C.). Entretanto, devemos reconhecer que apocalipses continuam a ser escritos por cristãos na era sub-apostólica e a literatura apocalíptica ainda era amplamente difundida a despeito da forte oposição de bispos poderosos por vários séculos. Entre esses apocalipses cristãos estão:

O Didache (capítulo 16)
Pastor de Hermas
Apocalipse de Pedro
V e VI Esdras
Oráculos de Sybilline (Cristão)
Livro de Elchasai
Apocalipse de Sofonias
Apocalipse de Elias
Apocalipse de Zacarias
Apocalipse de João (3)
Apocalipse de Maria (2)
Apocalipse de Estevão
Apocalipse de Paulo
Apocalipse de Thomas 5

É geralmente aceito que a literatura apocalíptica Judaica se originou como um protesto contra o programa de Helenização do governante selêucida Antíoco Epífanes (d. 164 A. C.). Como Alexandre o Grande, Antíoco acreditava que o mundo poderia ser unificado e pacificado na base do pensamento e cultura gregos. Muitos judeus de classe alta na Palestina não tinham dificuldade de se adaptar às maneiras gregas. Mesmo os sumo sacerdotes pertenciam ao partido Helenizador. 6

Entretanto, os planos dos governantes irritaram os religiosos tradicionalistas e seu controle da Palestina foi oposto por fanáticos nacionalistas. Quando um ataque selêucida ao Egito foi frustrado, Antíoco virou sua fúria contra os judeus criadores de problemas. Ele proibiu a observância do sábado e o rito da circuncisão, ordenou que cópias da Torá fossem destruídas e converteu o templo Judeu em um santuário a Zeus. O livro de Daniel então foi escrito para confortar e inspirar a fé em um tempo de perseguição religiosa. Mais tarde, apocalipses judeus e cristãos, se originaram em situações semelhantes de opressão governamental. Como Daniel, estes livros posteriores foram projetados para evocar coragem e confiança no triunfo definitivo de Deus. 7

A visão do mundo apocalíptica tem várias características principais. 8 Primeiro, Deus tem um propósito definitivo para a humanidade que é descrito no curso da história. Este plano divino pode ser explicado em termos de números sagrados como 4, 7, 12, 40, 70 ou 72. Assim, o curso ordenado da história é paralelo à regularidade da natureza com quatro estações do ano, sete dias da semana, doze signos do zodíaco, e setenta ou setenta e duas semanas de cinco dias no calendário antigo.

Segundo, a história como conhecemos culminará no nascimento de uma nova era completamente de paz, harmonia e proximidade com Deus. Em contraste com o que experimentamos agora, a idade que virá será um retorno ao jardim do Éden ou o advento do reino do céu na terra.

Terceiro, nossa história humana é mais do que um simples registro de mudanças políticas, econômicas e sociais. Somos participantes em uma colossal batalha de Deus e das hostes angélicas contra os exércitos sobrenaturais liderados por Satanás. A teologia apocalíptica tem uma angelologia e demonologia bem desenvolvidas porque a história é vista como interação entre nosso mundo e o mundo espiritual. De acordo com o esquema apocalíptico, a humanidade e toda a terra se tornaram subjugadas por Satanás e clamam a Deus por liberação. Consequentemente, ênfase deve ser colocada sobre a escravidão deste mundo ao pecado.

Quarto, o apocalipticismo proclama um evangelho de esperança. Deus não abandonará a criação. Ele intervirá dramaticamente na história para livrar o homem de Satanás e inaugurar uma era de glória messiânica. Existem várias visões divergentes sobre a natureza do libertador messiânico, mas total concordância que Deus finalmente triunfará sobre Sua oposição satânica. Não importa quão poderoso o mal possa parecer agora e a despeito de todos os desafios dos piedosos, o futuro verá o alvorecer do pleno reinado de Deus sobre a criação.

Quinto, todos os escritores apocalípticos afirmam que a consumação da história seguirá logo após um tempo de terrível perseguição religiosa, decadência moral e turbulência social. Assim, se tudo parece ruim, isso pode ser o prelúdio para o alvorecer da Nova Era. Calamidades políticas, morais e naturais servem como dores de parto da vinda do Messias.

Sexto, em contraste com grande parte do Velho Testamento, o apocalíptico é universal ao invés de nacionalista em sua orientação. 9 O vidente apocalíptico vê Deus manifestando Seu reino sobre todo o globo. A preocupação com Israel, mesmo que nunca ausente, está subordinada à preocupação com o destino da humanidade. O destino não separa Judeus de Gentios, mas os piedosos dos ímpios. O julgamento final será regido pelos padrões de justiça individual ao invés de nacionalidade ou raça.

Além dessas características fundamentais da visão de mundo apocalíptica, permita-me mencionar três aspectos negligenciados do movimento apocalíptico. Primeiro, ele não é pessimista, como é dito frequentemente, mas muito realista em sua estimativa do homem e da história. 10 Porque eles viam o mundo à luz da santidade de Deus, os apocalipticistas reconheciam a natureza decaída do homem, o curso do pecado original e o poder de Satanás. Mas eles acreditavam que o mal profundamente enraizado poderia ser erradicado e estavam confiantes que o melhor ainda estava por vir. Deus varrerá o mal e trará à fruição cada potencialidade para o bem. O apocalíptico é otimista porque está fundamentado no coração justo e amoroso do próprio Deus.

Segundo, a teologia apocalíptica foi grandemente influenciada pelos conceitos Zoroastrianos e imaginários derivados do contato judaico com a Pérsia. O apocalipticismo representa um avanço sobre o Judaísmo pré-exílio porque ele se beneficiou do diálogo criativo com uma fé profética estrangeira.

O estudioso contemporâneo do Novo Testamento Schmithals afirma que uma inconfundível proximidade da antiga teologia persa com o apocalíptico judaico: dualismo, universalismo e individualismo, ressurreição da morte, juízo final ardente e a vitória final escatológica de Deus sobre as forças sobrenaturais do mal. 11 Este processo do sincretismo Israelita-Iraniano demonstra como o Judaísmo se desenvolveu, por causa de sua abertura para a sabedoria religiosa além de suas próprias fronteiras.

Terceiro, a literatura apocalíptica sugere claramente que revelação nunca está limitada ao cânon sagrado, porque Deus pode e continua a revelar Suas formas misteriosas para o profeta e vidente. As revelações de Deus para “Daniel,” “Enoque,” “Ezdras,” “Baruque,” e outros videntes apocalípticos representam novas verdades divinas que não podem ser encontradas na Torá de Moisés. De forma semelhante, os profetas e profetizas apocalípticos cristãos reivindicam oferecer a verdade divina anteriormente desconhecida, mas agora revelada. Com efeito, o apocalíptico é um forte protesto contra a noção de um cânon fechado. Deus sempre pode revelar mais do que está depositado nos conteúdos de um precioso livro sagrado. Sem dúvida, este aspecto do apocalíptico explica porque esses escritos eram raramente favorecidos pelos guardiões da religião institucionalizada, tanto judaica como cristã.

Finalmente, é importante compreender que a piedade apocalíptica fornece a ponte necessária entre o Velho e o Novo Testamento. A esperança apocalíptica serviu como o fundamento religioso e ideológico para a pregação de João Batista, Jesus, os primeiros discípulos e as epístolas mais antigas de São Paulo. 12.


1 Os livros apocalíticos mais comumente conhecidos são o livro de Daniel no Velho Testamento e o Apocalipse de São João no Novo Testamento. 1E. Kdsemann, New Testament Questions of Today (1969), p. 102.

2 Muito significantemente, o simpósio Revelation as History publicado por Parmenberg e seus amigos surgiu de um seminário teológico no outono de 1960.

3 K. Koch, The Rediscovery of Apocalyptic (1972), p. 14.

4 Para os textos, ver R. H. Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament. 2 volumes (1913); G. Vermes, Dead Sea Scrolls in English (1962).

5 U. Hennecke-Schneemelcher, New Testament Apocrypha (1965), vol. 11.

6 Cf. M. Hengel, Judaism and Hellenism (1974).

7 H. H. Rowley, The Relevance of Apocalyptic (1963), pp. 13-53.

8 W. Schmithals, The Apocalyptic Movement (1975), pp. 13-49; Rowley, ibid., pp. 166-193.

9 Schmithals, op. cit., pp. 19-20.

10 O’Rowley, op. cit., pp. 178-179.

11 Schmithals, op. cit., pp. 113-123.

12 cf. K. Koch, “The Agonized Attempt to Save Jesus from Apocalyptic,” The Rediscovery of Apocalyptic (1972), pp. 57-97.