O Jesus HIstórico

O Novo Testamento fornece praticamente a única informação confiável que temos sobre Jesus, mas ao longo do livro seus materiais são altamente coloridos pelas doutrinas e culto das igrejas posteriores.21 Mesmo assim, para um crítico bíblico contemporâneo como Gfinther Bornkamm, é ainda possível recuperar “o esboço” da pessoa e história de Jesus.22

Bornkamm, um estudioso do Novo Testamento em Heidelberg e um discípulo de Bultmann, publicaram a primeira vida integral de Jesus na “nova busca” pelo Jesus histórico depois da Segunda Guerra Mundial. O Professor Norman Perrin, o notável estudioso bíblico, elogiou o Jesus of Nazareth de Borrikamm como uma “magnífica” pintura da vida e ensinamentos de Jesus, e facilmente “o melhor livro sobre Jesus disponível atualmente.”23 Por esta razão resumimos as conclusões de Bornkamm.

Que dados biográficos possuímos? A cidade natal de Jesus era Nazaré na semi-pagã e desprezada Galileia. Seu pai José 24 era um carpinteiro. Talvez Jesus seguisse o mesmo ofício. Seus quatro irmãos eram Tiago, José, Judas e Simão. Ele tinha irmãs, mas seus nomes são desconhecidos (Marcos 6:3). Nenhum membro de sua família foi um dos seguidores originais de Jesus.

Como todos os galileus, Jesus falava aramaico, mas ele também podia ler as antigas escrituras hebraicas. O grego era amplamente usado na Palestina do século primeiro pelos mercadores e funcionários públicos. Entretanto, não sabemos se Jesus ou seus discípulos eram capazes de falar ou entendê-lo. Jesus centrou seu ministério nas aldeias e vilas menores e nas Colinas e ao redor do mar da Galileia. Portanto, podemos assumir que ele teve um contato mínimo com a filosofia grega e o estilo de vida helênico.

Aos 30 anos, Jesus foi batizado por João e começou seu próprio ministério de pregação. O relato dos evangelistas sobre o batismo são 25 reinterpretações para propósitos apologéticos. Assim, não podemos saber o que Jesus pensava sobre o rito. Como João, ele se tornou um profeta da era messiânica vindoura, pregando na Galileia enquanto João pregava no vale do Rio Jordão. Ao contrário de João, o ministério de Jesus se concentrou não no batismo, mas na palavra falada (especialmente parábolas) e na mão de auxílio (principalmente curas de fé).

Não podemos ter certeza de quanto tempo durou a atividade de Jesus. Possivelmente alguns meses ou talvez um ano. 26 Os Evangelhos não nos dão uma cronologia confiável 27 da vida de Jesus. Não obstante, eles nos dizem muito sobre sua pregação, seus atos de cura, a oposição que ele gerou, e sua popularidade entre as classes dos Palestinos.

Bultmann 28 afirma que com um pouco de cautela podemos ver a partir do Novo Testamento que Jesus era um exorcista, que ele rompeu com o mandamento contra o trabalho no Sábado, que ele abandonou o ritual tradicional de purificações do Judaísmo e se envolveu em uma polêmica contra o legalismo farisaico. Jesus também espantou seus contemporâneos por sua amizade com classes sociais marginais como coletores de impostos, meretrizes, soldados romanos e samaritanos.

Além disso, ele era diferente da maioria dos rabinos por causa de sua associação regular com mulheres e proximidade com crianças. Ao contrário de João, Jesus não era um asceta. Assim, seus críticos o acusavam de ser apaixonado por festejar e beber vinho. Provavelmente é significativo que sua pequena companhia de seguidores incluía mulheres. Esta notável amizade com marginalizados, mulheres e crianças pode ter sido na mente de Jesus um sinal do alvorecer da era messiânica. 29

Para Bornkamm, o ponto de transição decisivo final na vida de Jesus foi a resolução de ir para Jerusalém a fim de confrontar a cidade capital com a mensagem do iminente reino de Deus. O que aconteceu em Jerusalém está, no entanto, entrelaçado com elementos lendários e os interesses doutrinários das igrejas posteriores. Assim, podemos ter muito pouco conhecimento 30 sobre o último capítulo na vida de Jesus. Era a fé cristã pós-Páscoa que insistia que ele entrasse em Jerusalém para morrer em cumprimento das profecias do Velho Testamento (Marcos 8:31, 9:12, 9:31, 10:33, 34).

A maioria das pessoas assume que as narrativas da Paixão estão fundamentalmente de acordo, porque o julgamento e a morte de Jesus eram esse aspecto importante da pregação cristã desde o período anterior. Mas se olhamos cuidadosamente para os Evangelhos Sinópticos e os compararmos com os relatos Joaninos, ficaremos surpresos com as diferenças radicais. Além disso, há grandes acréscimos, omissões e alterações na história contada pelos três Sinópticos.

Primeiro de tudo, vamos observar a contradição fundamental entre os Sinópticos e João sobre a entrada triunfal em Jerusalém. De acordo com Marcos, Mateus e Lucas, a entrada triunfal e a purificação do templo pela expulsão dos cambistas ocorreram no início da última semana de Jesus na terra. Contudo, de acordo com o Quarto Evangelho (João 2:13-25), a purificação do templo ocorreu na abertura do ministério de Jesus, imediatamente após a mudança milagrosa da água para o vinho na festa do matrimônio em Caná.

Em segundo lugar, porque os inimigos de Jesus planejavam matá-lo? De acordo com os Sinópticos, o sumo sacerdotes e escribas buscaram como matar Jesus depois que ele começou a ensinar em Jerusalém (Marcos 14:1,2), embora Herodes Antipas tenha tentado apoderar-se de Jesus enquanto ele estava pregando na Galileia (Marcos 6:16; Lucas 9:9, 13:31). Entretanto, no Quarto Evangelho, o sumo sacerdote Caifás decide matar Jesus logo que ele ouve que Lázaro tinha sido milagrosamente levantado dos mortos (11:49). A crucificação era necessária porque o sumo sacerdote temia um realizador popular de milagres? Ou porque Jesus despertou a inimizade dos escribas e fariseus? Ou porque ele ameaçou destruir o templo, como alegaram as testemunhas no julgamento? Ou porque o governante Galileu Herodes Antipas tinha medo de um segundo João Batista? Ou porque os romanos buscavam suprimir um pretendente a messias revolucionário? Os quatro Evangelhos dão respostas diferentes.

Terceiro, devemos reconhecer as diferentes adições que Mateus e Lucas fazem à história da Paixão original de Marcos. Mateus acrescenta a Marcos vários incidentes muito importantes: uma descrição do suicídio de Judas (27:3-10), Pilatos lavando suas mãos para demonstrar sua inocência em relação à execução de Jesus (27:24,25) e a ressurreição de muitos santos judeus mortos durante o terremoto que seguiu a morte de Jesus (27:51-53). Lucas também suplementa a narrativa de Marcos com detalhes significativos.

De acordo com Lucas somente, Jesus chora sobre Jerusalém (19:41-44) e pede para seus discípulos se armarem com espadas (22:36-38). Somente Lucas nos diz que Jesus restaura milagrosamente a orelha do homem que foi atacado pelos discípulos quando os soldados prenderam Jesus no jardim do Getsêmani (22:49-51). Somente Lucas relata que Jesus foi julgado diante de Herodes Antipas como também Pilatos e o Sinédrio (23:4-16) e que uma grande multidão de mulheres chorando acompanhou Jesus no caminho para Golgotá (23:27-31). Sem tentar decidir se essas adições que Mateus e Lucas fizeram são históricas, pode-se ver como o Evangelho de Marcos foi elaborado sobre os outros dois Sinópticos.

Quarto, examinemos cuidadosamente as diferentes versões do incidente do Getsêmani. Marcos descreve a tríplice oração agonizante de Jesus que Deus o salvasse do martírio da cruz: “Pai, todas as coisas Te são possíveis; afaste este cálice de mim; contudo, não faça o que eu quero, mas o que Tu queres” (Marcos 14:36). Este evento comovedor coloca dois problemas importantes. Como podemos saber o que aconteceu no jardim, sendo que os discípulos dormiram e Jesus foi imediatamente separado de seus seguidores através de sua prisão? Ainda mais importante, o incidente tem algumas implicações teológicas inquietantes. Houve um período, por mais breve que fosse, quando Jesus perdeu a fé na providência de Deus? De acordo com este incidente do Getsêmani, Jesus orou desesperadamente para ser poupado da dor da cruz. Ou talvez Jesus orou para que Deus o protegesse de seus inimigos e o salvasse de seu destino.

Recentes estudos bíblicos reconhecem crescentemente a violência e horror da última semana de Jesus. Como observou um professor jesuíta da Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, Jesus não aceitou desde o início sua crucificação predeterminada. Ele não começou sua missão proclamando, “minha crucificação está próxima; arrependam-se e acreditem nas boas novas da minha morte expiatória.” Certamente na oração do Getsêmani Jesus revela as arestas da dor enquanto ele meditava sobre seu futuro. Nas últimas horas antes de sua prisão, Jesus perde a coragem e procura uma forma para escapar da condenação, nos diz este teólogo católico. 31

Portanto, é esclarecedor examinar as formas muito divergentes que os últimos evangelistas colocam uma cortina sobre a agonia do Getsêmani, como eles mitigam a dor de Jesus. Marcos utiliza o incidente como uma ilustração da cegueira dos discípulos em relação aos sentimentos de Jesus. Quando seu coração estava cheio com tanta agonia, os mais próximos a ele adormeceram. Mateus sugere que Jesus não precisava ser preso, pois ele tinha uma legião de anjos para salvá-lo (26:53). Isto é, Jesus aceitou voluntariamente seu destino como um filho obediente. Lucas utiliza uma abordagem diferente, acrescentando que Jesus foi confortado por um anjo visitante (22:43). O Quarto Evangelho omite as orações de petição de Jesus. Contradizendo explicitamente Marcos, João coloca na boca de Jesus as palavras, “A taça que o Pai me deu, eu não a beberei?” (18:11). Esta breve discussão da cena do jardim demonstra como as tradições do Evangelho foram revisadas e remodeladas de acordo com os objetivos dogmáticos s apologéticos da comunidade cristã em desenvolvimento.

Neste ponto, vamos olhar para como os Unificacionistas explicam a oração do Getsêmani.

1) Jesus veio liberar a tristeza divina e estabelecer o reino.

2) Incapaz de concluir sua missão, ele quase foi superado com angústia.

3) Ele sabia que sua morte na cruz bloquearia o plano de Deus para Seu povo.

4) O sofrimento da humanidade seria indefinidamente prolongado, e seus discípulos seriam forçados a carregar uma cruz como a sua própria. Preenchido com esses pensamentos desesperados, Jesus orou por alguma forma possível para cumprir o comando divino.

Em quinto lugar, deve-se levantar a questão problemática do envolvimento romano na morte de Jesus. Seus compatriotas ou o governo imperial foram responsáveis pela crucificação? Repetidamente os porta-vozes judeus (e outros) tentaram colocar a culpa nos romanos. O Novo Testamento tenta disfarçar o fato que Jesus foi julgado por Pilatos e executado como um agitador político cuja cruz foi colocada entre a de dois mártires Zelotes. Inúmeros livros foram publicados nesta infindável controvérsia. Enquanto nenhuma resolução parece estar próxima, todos concordam com um fato básico. 32 Como resultado da desastrosa revolta palestina em 70 D. C., os cristãos ficariam muito interessados em cobrir qualquer possível conexão entre o movimento messiânico de Jesus e a causa Zelote. Desde o tempo de Marcos até o período posterior a Mateus, Lucas e João, as tradições do Evangelho foram cada vez mais retrabalhadas para exonerar os romanos e culpar os judeus pela morte de Jesus. Finalmente os cristãos Coptas veneraram Pôncios Pilatos como um santo. Consequentemente, hoje estamos bem cientes das tendências apologéticas em ação no desenvolvimento das narrativas da Paixão.

Por último, reconhecemos as alterações fundamentais feitas no cenário do Evangelho sobre o Calvário. Tem sido costume meditar sobre as “sete últimas palavras” de Jesus na cruz. Contudo, nenhum dos escritores dos Evangelhos apoia essa interpretação. As chamadas sete últimas palavras representam uma tradição composta criada pela Igreja posterior.

O que relatam os Evangelhos? Marcos diz que Jesus falou somente uma vez na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (15:34). Sendo que o versículo de Salmos 22:1 poderia facilmente ser mal interpretado como o grito de desespero pelo abandono de Deus, Lucas e João se sentiram constrangidos em fazer adições que pareceriam mais adequadas. Lucas retrata um nobre mártir. Quando preso à cruz, a primeira oração de Jesus é para conceder perdão: “Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem” (23:34). Para o “ladrão” penitente (presumivelmente um terrorista Zelote), Jesus promete, “Hoje, tu estarás comigo no Paraíso” (23:43). Então no final, ele se aproxima serenamente da reunião com Deus: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (23:46). Ao retratar sua teologia distinta da cruz, Lucas relata somente estas três expressões do momento da morte de Jesus. Entretanto, Mateus prefere copiar Marcos. Provavelmente porque ele estava fascinado em provar que Jesus era o cumprimento das profecias do Velho Testamento, Mateus retém a citação de Marcos dos Salmos. Para ele não havia nada teologicamente estranho no grito de abandono, provando que isto era visto como mais uma previsão bíblica que finalmente se torna realidade. De acordo com Mateus, Marcos estava correto: Jesus falou somente uma vez na cruz. Muito diferente disto é o relato Joanino. Ao invés da citação de Marcos dos Salmos 22 ou as três frases de Lucas, este autor registra três (ou quatro) novas palavras: “Mulher, eis o teu filho”; “Eis tua mãe” (19:26,27); “Tenho sede” ” (19:28) e “Está consumado” (19:30). Na teologia de João sobre a cruz, Jesus termina seu ministério terreno com um grito de vitória porque sua morte é um momento de glorificação, permitindo-lhe 33 atrair todos os homens para Deus.


21 Para uma visão útil contemporânea, ver a antologia de Harvey K. McArthur, In Search of the Historical Jesus (1969).

22 Para a atitude de Bultmann em relação a isto, ver sua conferência em 1959 em McArthur, pp. 161-163.

23 N. Perrin, The New Testament, An Introduction (1974), p. 303.

24 Para uma visão diferente e aquela da Teologia da Unificação, ver a seção sobre o nascimento virginal em Y. O. Kim, Unification Theology and Christian Thought (1976), pp. 127-131.

25 Para uma visão muito cética, conforme M. Enslin, Christian Beginnings (1956), pp. 149-153. J. Jeremias, New Testament Theology (1971) dá uma interpertação mais aceita de forma geral, pp. 43-49.

26 Muitos cristãos assumem que o ministério de Jesus durou três anos. De onde vem essa ideia? Não a partir de Marcos, Mateus e Lucas. De acordo com estas fonts, Jesus esteve em Jerusalém para a Páscoa somente uma vez depois que começou seu ministértio, embora a lei judaica do período exigia que todos celebrassem este festival na cidade santa. O Quarto Evangelho faz referência a três Páscoas. (João 2:13, 6:4, 11:55). Então a questão é se podemos confiar em João contra os três evangelistas mais velhos? Bornkamm e outros confiam na tradição Sinóptica. Hans Kfing diz que o ministério público de Jesus durou no máximo três anos, ou talvez algums meses dramáticos (On Being a Christian, (1976, p. 150).

27 H. Conzelmann, Jesus (1973), pp. 20-25.

28 Ver a conferência de Bultmann em McArthur, p. 161.

29 Conforme Ernst Fuchs, Studies of the Historical Jesus (1964), pp. 11-31; see R. H. Fuller, The New Testament in Current Study (1962), p. 34.

30 M. G. Bornkamm, Jesus of Nazareth (1960), pp. 154-158.

31 G. O’Collins, The Calvary Christ (1977), pp. 30,32,37,39.

32 Cf. H. Ming, “Jesus in Conflict: A Jewish-Christian Dialogue,” Signposts for the Future (1978), pp. 64-87.

33 Cf. R. E. Brown, The Gospel According to John (1970), vol. 2, pp. 922-931.